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Possibilidade de mudanças

Possibilidade de mudanças no Ethos Cultural do imaginário coletivo de um povo pelo viés da noção de Habitus*.


Dom Francisco Lima Soares

                  Bispo de Carolina



Catedral Metropolitana de São Luís | Após decreto de reabertura para missas presenciais | Foto: Catedral da Sé


Objetivamente, como dado existencial, por causa da pandemia do covid-19, a Igreja teve que suspender suas atividades presenciais de aproximadamente cinco meses. Nesse momento, optou pelo retorno das liturgias presenciais, mesmo com restrição. Desse fenômeno, propomos à luz da psicologia social, da sociologia e da antropologia, levantar breves questionamentos sobre o impacto nos hábitos e costumes do povo.


Partimos de dois questionamentos: Como compreender a probabilidade de mudanças do ethos cultural de um povo tendo em vista o paradigma consuetudinário?  O antropólogo Darcy Ribeiro em sua obra O povo brasileiro diz que ferro é frágil e aço se quebra com facilidade, mas hábitos e costumes não se quebram assim tão facilmente. Esse postulado toma forma ainda mais rigorosa com o direito consuetudinário pelo fato de ser constituído por um conjunto de costumes que são reconhecidos e compartilhados coletivamente por uma comunidade, um povo, uma tribo ou grupo étnico.


Como compreender a particularidade do processo de construção das identidades a partir das mudanças estruturais e institucionais dos modelos tradicionais de socialização? Propomos analisar essas questões partindo da emergência de uma nova configuração cultural, em que o processo de construção do habitus individual passa a ser mediado pela coexistência de distintas instâncias produtoras de valores culturais e referências identitárias.


No espírito da pós-modernidade, a realidade específica de contextos tradicionais, está longe de ser encontrada no mundo contemporâneo.

Propomos considerar o dado cultural presente na religião enquanto manifestação de fé no mundo contemporâneo como instância socializadora que coexiste numa intensa relação de interdependência. Instâncias que configuram hoje uma forma permanente e dinâmica de relação, podendo estas produzir impactos de grande magnitude na maneira de ser e de fazer de um povo, incluindo o movimento e efemeridade: as rápidas mudanças e profundas no sentido líquido de Zygmunt Bauman.



Missa com presença de fiéis, na Catedral, após decreto

Tendo como base a definição de habitus como sistema de disposições ligado a uma trajetória social, a teoria praxiológica pretende apreender a historicidade e a plasticidade das ações. Ou seja, as ações práticas transcendem ao presente imediato, referem-se a uma mobilização prática de um passado, de uma trajetória e de um futuro inscrito no presente como estado de potencialidade objetiva.  O conceito de habitus não expressa uma ordem social funcionando pela lógica pura da reprodução e conservação; ao contrário, a ordem social constitui-se através de estratégias e de práticas pelas quais os agentes reagem, adaptam-se e contribuem no fazer da história.


A total coerência ou a total reprodução das estruturas, não é uma perspectiva contemplada pelo habitus. O princípio que funda o conceito é o da relação dialética entre uma conjuntura e sistemas de disposições individuais em processo de interação constante com as estruturas. Assim, a perspectiva histórica, a interpenetração entre passado, presente (trajetória) e futuro (o devir) são dimensões constitutivas dos habitus individuais. Visto que estamos na era do individualismo exacerbado.  


Entretanto, seria possível pensar o conceito de habitus como instrumento conceptual segundo a ótica da conservação, operando de forma automática? Ou seja, o habitus tendendo a reproduzir as estruturas das quais é o produto. Entendemos que não porque estaríamos sugerindo uma realidade utópica. No entanto, é possível pensar numa maior coerência e homogeneidade à medida que houvesse uma larga correspondência entre ente os agentes chegando a uma socialização. No espírito da pós-modernidade, a realidade específica de contextos tradicionais, está longe de ser encontrada no mundo contemporâneo.


Nada será como antes. Agora mais do que nunca é urgente reacender o postulado do Papa Francisco: Uma Igreja em saída

Assim, consideramos possível pensar o habitus do indivíduo da atualidade formulado e construído a partir de referências diferenciadas entre si. Isto é, um habitus produto de um processo simultâneo e sucessivo de uma pluralidade de estímulos e referências não homogêneas, não necessariamente coerentes. Uma matriz de esquemas híbridos que tenderia a ser acionada conforme os contextos de produção e realização.


Assim abre-se a possibilidade de pensar o surgimento de um outro sujeito social, no âmbito do costume, por exemplo, do fiel ir missa. Abre-se espaço para se pensar a constituição da identidade social do indivíduo moderno a partir de um habitus híbrido, construído não apenas como expressão de um sentido prático incorporado e posto em prática consuetudinária, mas uma memória volitiva, mutável em ação em constante construção.  A ausência de referências, ou visto de outro modo, a diversidade de referências, na falta de um sistema único, integrado e permanente de valores que oriente a ação, o indivíduo pode ver-se impelido a traçar suas próprias diretrizes de maneira cada vez mais consciente e reflexiva, fazendo uso da razão, refletindo, no sentido dado pelo sociólogo Antony Giddens ao conceito de reflexividade. É possível considerar, pois, a configuração de um mundo objetivo pressionando para que o indivíduo assuma posições, faça suas escolhas. Em um mundo objetivo em que as instituições perdem paulatinamente o poder de propor normas e condutas, o indivíduo pode viver a experiência de construir reflexivamente parte de seu próprio destino.  


Esse sentido imagético que tomamos da noção de habitus, nos faz refletir que de maneira objetiva, não pensemos que depois da pandemia, o nosso povo, pela força do costume, volte com facilidade a participar das celebrações. Pois dentro desta lógica de construção do costume de ir à missa, vem também imbricado na lógica do movimento mediado pela coexistência de distintas instâncias produtoras de valores culturais e referências identitárias. Em simples palavras, após a pandemia, precisamos intensificar nossa ação missionária para ir ao encontro, porque pela disposição das coisas, nada será como antes. Agora mais do que nunca é urgente reacender o postulado do Papa Francisco: Uma Igreja em saída.



*O habitus pode ser compreendido como um conjunto de disposições de ações estabelecidas e aprendidas, as quais não existem a partir da racionalização do ser que as executa. Trata-se de "um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepções, de apreciações e de ações [...]" (BOURDIEU, 1983, p. 65).     

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