Dom Sebastião Lima Duarte
Bispo de Caxias (MA)
A Igreja assinalou e assentou no Livro (Canon) tantos nomes de pessoas ilustres no seguimento de Jesus, o Cristo, a quem ela chama de santos (sanctus, marcado pra ser de Deus).
Os primeiros vieram do sangue, que são os mártires, outros da vivência heroica das virtudes cristãs, outros pelo querer do próprio papa e nosso santo padre, o papa Francisco, até acrescentou um quarto critério: “Oferta livre e voluntária da vida e heróica aceitação propter caritatem (para a caridade) de uma morte certa e a um curto prazo”. Muitos se destacaram pela doutrina como os doutores e doutoras da Igreja.
Desses santos e santas, muitos são facultadas celebrar suas memórias, fazer ou não, como São João Paulo II por exemplo; outros se deve fazer memória, como São Justino; outros se deve fazer festa, como Santa Maria Madalena; a pouquíssimos se faz grande festa, solenidade, como São João Batista, no seu nascimento.
A Igreja celebra os santos e santas, como envolvido de forma exemplar no mistério pascal de Cristo: incorporados, atingidos e expressão. Por isso que oficialmente se celebra com a Sagrada Eucaristia, antecedida por um tríduo, uma novena, uma trezena, no caso se Santo Antônio, ou depois da celebração principal como acontece no Círio de Nossa Senhora de Nazaré, em Belém, que se chama Recirio.
As festas com maior participação do povo, que atingiram e incorporaram a cultura e a religiosidade, são as dos santos que “caíram na graça do povo”, literalmente; numa verdadeira apropriação da vida, dos ditos e dos feitos do santo ou da santa. Muitas destas festas escapam do controle da Igreja e são vividas, dinamizadas e mantidas pelo povo, assim celebradas.
O que seria de São Cosme e São Damião, de Santa Bárbara, de São Jorge, se não fossem os cultos afro descendentes, os terreiros de umbanda? O que seria de São Pedro, sem as comunidades ribeirinhas, marítimas? No Brasil, conseguiu-se indulto da Santa Sé para mudar data ficando no domingo mais próximo do dia 29 de junho, pela importância das duas colunas da Igreja, Pedro e Paulo. Segundo testemunhos antigos foram martirizados no mesmo dia, 29 de junho, não no mesmo ano, São Pedro foi martirizado um ano antes.
Assim é a Solenidade do nascimento de São João Batista, se não fosse a pandemia teríamos tantas manifestações fora da igreja, é claro, mesmo que muitas delas poderiam ser acolhidas dentro da igreja, segundo as Diretrizes Gerais da CNBB, de 2003-2006: “A comunidade eclesial deve sentir-se responsável pela evangelização de todos. Para isto a participação nas celebrações litúrgica e na vida sacramental é muito importante. Deve, também, acolher com atenção e discernimento a religiosidade popular.
A veneração de Maria Santíssima, modelo dos discípulos e discípulas, e dos santos e santas, seguidores de Jesus, aproxima-nos também de Cristo e mantém aberta no coração das pessoas, especialmente das mais pobres, a procura do Deus verdadeiro, Deus-conosco”. (n. 36)
São tantas as expressões entre 23 e 24 de junho, particularmente no Nordeste do Brasil, no Maranhão então, chega a envaidecer o coração da gente. Para quem acha que é só folia, está por fora da espiritualidade subjacente e da dimensão orante da Festa de São João, além das outras dimensões:
1. A fogueira, desde cedo preparada com carinho para ser acesa ao anoitecer, como insistindo que a escuridão não diminua a claridade da festa do nascimento do precursor.
2. A promessa é um elemento importantíssimo, o boi é o pagamento, a ação de graças. Na casa de meus pais havia ‘brincadeira’ de boi todos os anos, depois cessou. Certa vez perguntei a meu pai o porquê parou, ele respondeu: tua mãe não pariu mais. Minha mãe acrescentou: Era só eu ficar grávida que ele fechava logo contrato com São João;
3. A ornamentação é própria, já coloca a todos dentro do espirito da festa;
4. Existe um verdadeiro rito inicial e atraente, que toca ao coração, envolve, e uma linguagem própria, chamam-no de guarnecer: “Vamos reunir, vamos guarnecer, esta é a hora que São João mandou”, canta o amo do boi, o puxador das toadas;
5. A reza, que certa vez quando eu era pároco de Zé Doca, numa comunidade do interior, demorou mais que a missa com batizados; nesse momento se ‘faz o pelo siná’, canta-se a ladainha em latim e se arremata com Padre Nosso e Ave-Marias cantados, e o bendito de São João com muitos pés: “Bendito louvado seja, São João no seu altar, dizendo todos, que viva São João na glória está”;
6. O grande mistério e que leva tempo para realizar é mostrar o ‘couro’, ‘lombo’ do boi, que somente a bordadeira e quem colocou no boi viu antes. É um momento magnético, mistagógico mesmo; boi descoberto e erguido, foguetes subindo, batuques iniciados: "zabumba estremece o chão".
7. As outras dimensões em torno da Festa de São João, além dos cinco sotaques que existem no Maranhão, a saber: matraca, zabumba, pandeiros, orquestra, deve-se considerar também os mistos e as influências do boi-bumbá do Pará e dos de Parintins, no Amazonas. Junte-se aí: quadrilhas, as danças tradicionais; a arte e a culinária, manifestam o toque da criatividade e dos sabores locais e universais.
Tudo isso pra dizer um pouco do muito que é a participação popular na festa de um Santo que "caiu nas graças do povo" e que pouco precisa da igreja pra fazer do seu jeito, mesmo tendo recebido dela o santo que festeja. Cabe a nós cumprirmos o que há muito tempo a Igreja no Brasil sabiamente incentivou: “deve, também, acolher com atenção e discernimento a religiosidade popular”.
Viva São João Batista, viva o precursor, e viva o povo de Deus!!!
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